Entendo todo aqueles que, do alto de sua superioridade
numérica, para não falar em quase unanimidade, proclamam Matança do Porco (1973), o terceiro LP, como a obra-prima do Som
Imaginário. Talvez seja mesmo o disco mais acabado da banda, aquele em que há
uma ideia clara que perpassa todo álbum. Meu coração, contudo, fica com o
primeiro LP deles, intitulado simplesmente Som Imaginário e lançado em 1970.
É uma explosão de genialidade que tenta dar conta de
personalidades tão distintas quanto as de Zé Rodrix, Frederiko, Tavito e Wagner
Tiso em um único disco. Se Matança do
Porco é o disco progressivo da banda, seria prematuro descartar este como
não-progressivo, ou mesmo ignorar o que ele tem de progressivo, num sentido
mais amplo, menos sinfônico e purista do termo.
O primeiro, o terceiro e o quarto compõem, juntos, a faixa
de abertura, "Morse", uma espécie de jam-session em estúdio,
jazzística e latina, cheia de percussão e órgão envenenado. Na segunda, meio
infantil, mas genial em seu arranjo instrumental e no vocal psicodélico, é toda
composta por Zé Rodrix, a personalidade mais forte do disco. Chama-se
"Super-Goo" e tende a conquistar de vez o ouvinte de coração aberto.
Na terceira já estamos dominados, prontos para viajar com a voz de Milton Nascimento
em sua "Tema dos Deuses", uma canção cheia de climas, em que a
guitarra de Frederiko se impõe, como sempre, mesmo que discreta. Isso nos
lembra que o Som Imaginário nessa época acompanhava Milton em discos e shows,
assim como acompanhava outros músicos, notadamente Gal Costa.
Rodrix volta em "Make Believe Waltz", que compôs
com Mike Renzi. Rodrix grita, em inglês, sem disfarçar sua voz feia, de taquara
rachada, mas que por algum motivo me encanta. Talvez seja a vontade, o
descaramento de cantar assim, como um Bob Dylan em rádio AM com pilhas fracas.
Talvez seja uma bela voz, afinal, e eu sei pouco das coisas.
As três faixas seguintes mostram uma dominação do
guitarrista Frederiko. Ele que seria mais dominador com a saída de Rodrix, no
segundo álbum, antes da dominação de Tiso no terceiro, brilha aqui em três
temas mais diretos, mais sintonizados com o que se estava fazendo no rock da
época. O primeiro deles é "Pantera", em cima de uma letra de Fernando
Brant. Trata-se de um mantra bluesístico que abre espaço também para o sotaque
carioca de Zé Rodrix, alternando com a voz mais certinha de Frederiko. Voz que
brilha no segundo de seus temas, "Sábado", uma das faixas de beleza
mais secreta do álbum. É gosto adquirido. Depois de algumas audições, essa bela
e poética canção não sai mais de sua cabeça (ao menos o "sábado eu
vou" entoado no refrão não sairá, garanto). "Nepal", a terceira
canção seguida comporta por Frederiko, está mais para uma brincadeira, um
mantra psicodélico que vira canção infantil na segunda parte: "no Nepal
tudo é mais barato, no Nepal tudo é muito barato"...
O grande hit do disco chega em seguida. Uma canção composta
por três gênios da música mineira: Lô Borges, Beto Guedes e Fernando Brant.
Sim, "Feira Moderna", em uma de suas várias versões, quase todas
ótimas (é difícil estragar uma música dessas). Um convite sensual. É engraçado
como Rodrix canta essa música (algo que fica mais claro ao vivo, como no ensaio
da TV Cultura que tem no YouTube). Ele canta como se tivesse um baita vozeirão,
como se fosse um Orlando Silva e não o Lou Reed raquítico que amamos. Talvez
possamos creditar isso à sua vontade e à sua musicalidade explêndida, que faz
com que tudo que ele tocasse, ao menos na primeira metade dos anos 70 (Som
Imginário, Sá, Rodrix e Guarabyra, carreira solo) virasse ouro.
"Hey Man", composta por Tavito e Zé Rodrix, é
inclassificável. Pop, progressiva, jazzy, psidodélica, com uma melodia
celestial em sua terceira parte e uma estrutura em que a primeira parte fica só
lá, no começo, como um prelúdio ameaçador, com percussão e a voz doida de
Rodrix nos preparando para as duas partes seguintes, que se repetem como um
resumo do que se fez de melhor na música brasileira dos anos 60 e 70. Uma
levada dançante do baixo e da bateria na segunda parte e um mellotron tornando
a terceira parte algo realmente inesquecível. Esse clima seria repetido no maravilhoso primeiro disco
solo de Tavito, de 1979 (o que tem "Rua Ramalhete" e
"Naquele Tempo"), mas infelizmente ele não regravou essa música
soberba.
Nenhum comentário:
Postar um comentário