segunda-feira, agosto 28, 2017

Som Imaginário


Entendo todo aqueles que, do alto de sua superioridade numérica, para não falar em quase unanimidade, proclamam Matança do Porco (1973), o terceiro LP, como a obra-prima do Som Imaginário. Talvez seja mesmo o disco mais acabado da banda, aquele em que há uma ideia clara que perpassa todo álbum. Meu coração, contudo, fica com o primeiro LP deles, intitulado simplesmente Som Imaginário e lançado em 1970.

É uma explosão de genialidade que tenta dar conta de personalidades tão distintas quanto as de Zé Rodrix, Frederiko, Tavito e Wagner Tiso em um único disco. Se Matança do Porco é o disco progressivo da banda, seria prematuro descartar este como não-progressivo, ou mesmo ignorar o que ele tem de progressivo, num sentido mais amplo, menos sinfônico e purista do termo.
O primeiro, o terceiro e o quarto compõem, juntos, a faixa de abertura, "Morse", uma espécie de jam-session em estúdio, jazzística e latina, cheia de percussão e órgão envenenado. Na segunda, meio infantil, mas genial em seu arranjo instrumental e no vocal psicodélico, é toda composta por Zé Rodrix, a personalidade mais forte do disco. Chama-se "Super-Goo" e tende a conquistar de vez o ouvinte de coração aberto. Na terceira já estamos dominados, prontos para viajar com a voz de Milton Nascimento em sua "Tema dos Deuses", uma canção cheia de climas, em que a guitarra de Frederiko se impõe, como sempre, mesmo que discreta. Isso nos lembra que o Som Imaginário nessa época acompanhava Milton em discos e shows, assim como acompanhava outros músicos, notadamente Gal Costa.

Rodrix volta em "Make Believe Waltz", que compôs com Mike Renzi. Rodrix grita, em inglês, sem disfarçar sua voz feia, de taquara rachada, mas que por algum motivo me encanta. Talvez seja a vontade, o descaramento de cantar assim, como um Bob Dylan em rádio AM com pilhas fracas. Talvez seja uma bela voz, afinal, e eu sei pouco das coisas.

As três faixas seguintes mostram uma dominação do guitarrista Frederiko. Ele que seria mais dominador com a saída de Rodrix, no segundo álbum, antes da dominação de Tiso no terceiro, brilha aqui em três temas mais diretos, mais sintonizados com o que se estava fazendo no rock da época. O primeiro deles é "Pantera", em cima de uma letra de Fernando Brant. Trata-se de um mantra bluesístico que abre espaço também para o sotaque carioca de Zé Rodrix, alternando com a voz mais certinha de Frederiko. Voz que brilha no segundo de seus temas, "Sábado", uma das faixas de beleza mais secreta do álbum. É gosto adquirido. Depois de algumas audições, essa bela e poética canção não sai mais de sua cabeça (ao menos o "sábado eu vou" entoado no refrão não sairá, garanto). "Nepal", a terceira canção seguida comporta por Frederiko, está mais para uma brincadeira, um mantra psicodélico que vira canção infantil na segunda parte: "no Nepal tudo é mais barato, no Nepal tudo é muito barato"...

O grande hit do disco chega em seguida. Uma canção composta por três gênios da música mineira: Lô Borges, Beto Guedes e Fernando Brant. Sim, "Feira Moderna", em uma de suas várias versões, quase todas ótimas (é difícil estragar uma música dessas). Um convite sensual. É engraçado como Rodrix canta essa música (algo que fica mais claro ao vivo, como no ensaio da TV Cultura que tem no YouTube). Ele canta como se tivesse um baita vozeirão, como se fosse um Orlando Silva e não o Lou Reed raquítico que amamos. Talvez possamos creditar isso à sua vontade e à sua musicalidade explêndida, que faz com que tudo que ele tocasse, ao menos na primeira metade dos anos 70 (Som Imginário, Sá, Rodrix e Guarabyra, carreira solo) virasse ouro.

"Hey Man", composta por Tavito e Zé Rodrix, é inclassificável. Pop, progressiva, jazzy, psidodélica, com uma melodia celestial em sua terceira parte e uma estrutura em que a primeira parte fica só lá, no começo, como um prelúdio ameaçador, com percussão e a voz doida de Rodrix nos preparando para as duas partes seguintes, que se repetem como um resumo do que se fez de melhor na música brasileira dos anos 60 e 70. Uma levada dançante do baixo e da bateria na segunda parte e um mellotron tornando a terceira parte algo realmente inesquecível. Esse clima seria repetido no maravilhoso primeiro disco solo de Tavito, de 1979 (o que tem "Rua Ramalhete" e "Naquele Tempo"), mas infelizmente ele não regravou essa música soberba.

O disco se encerra com "Poison", excelente composição de Rodrix (com Marco Antonio), discreta o suficiente para nos permitir a recuperação após duas faixas estrondosas como "Feira Moderna" e "Hey Man". E sendo uma canção de ninar em rock progressivo, é também uma das faixas que permitem que consideremos este disco como um dos melhores registros de rock progressivo que já se fez no Brasil. Bah, raios, é de fato um dos melhores discos já feitos no Brasil.

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